O antigo Espaço Arandú está absurdamente colorido. É difícil passar indiferente ao paredão da Avenida Jorge Schimmelpfeng, centro de Foz do Iguaçu. O vermelho, o azul, o marrom gritante se misturam com as placas comerciais e chamam a atenção de motoristas e pedestres. A principal propaganda é a do Coliseu Boxe Center, mas o espaço, democrático, também abriga "reclames" de um pub & snooker, entre outras chamadas.O imóvel é particular e está alugado para a academia. Talvez em breve seja comprado pela escola de boxe. Mas o interesse do Megafone não é pela transação comercial, mas sim pelo antigo mural “Raízes", de significativos 90 metros quadrados.
Composta em 1997, a obra de arte embelezou o centro da cidade durante muitos anos.Ela era predominantemente marrom. Era harmônica. Mas ao contrário dos objetos que desbotam e perdem a graça com o tempo, a composição ganhou cores e mais cores ano a ano. Hoje, parece um armário de madame. Perdeu o sentido. Está deslocada. Sua existência seria aceitável se estivesse em Las Vegas.O erro parece ter sido da administração pública, que contratou artistas para executar um trabalho num imóvel particular. "Raízes" foi realizada para decorar a fachada do extinto Espaço Cultural Arandú e formou parte de um projeto maior que os artistas Miguel Hachen, Ana Hmeljevski e outros colaboradores apresentaram no início da gestão de ex-prefeito Harry Daijó (1997-2000).
A reportagem entrevistou Miguel Hachen, 44 anos, com a proposta de entender a metamorfose do mural. “Uma obra edificada com bastante dificuldade visto que contém áreas - porta, janela e espaços vazios - que formam parte dela e uma considerável inclinação para o lado esquerdo que visualmente pesa”. Leia a entrevista, concedida por e-mail. Além do mural, puxamos assunto sobre a cultura do município. Está lá fim do texto. Boa leitura.
O senhor considera as propagandas que invadiram o mural uma agressão à arte? Como o senhor classifica as propagandas no mural?
A poluição visual criada em torno do mural começou com a instalação de um ponto de ônibus, cuja estrutura se sobrepõe à obra, e continuou com uma série de placas e a horrível repintura aplicada sobre a fachada. Obviamente que constitui uma agressão à arte e um desperdício do dinheiro público. Entretanto, era de se esperar que com o tempo isso acontecesse. Há pouco por se fazer a respeito, salvo apelar para o bom senso dos inquilinos e do proprietário do prédio. Visto que é uma edificação particular, o imóvel com o tempo será demolido e a obra desaparecerá da paisagem urbana.
Existe algum meio termo para o uso do imóvel comercialmente (inclusive com a inserção de comerciais) e a valorização-respeito à arte? Caso a resposta for negativa, qual é a alternativa para que o conceito original da obra não seja modificado?
O propósito original da obra era o de embelezar a fachada do espaço cultural. Como o imóvel na época foi alugado pela prefeitura era de se esperar que o próximo prefeito não desse continuidade ao espaço e este ficasse abandonado e, inevitavelmente, se instalasse algum comércio particular. É difícil achar um meio termo que concilie o mural com o uso comercial. A única alternativa possível -ainda que muito improvável- seria restaurar a obra e recuperar o espaço cultural, mas acredito que os políticos estão longe de considerar essa possibilidade.
Que técnica foi utilizada para realizar a obra, como você pode descrevê-la?
O procedimento técnico usado nessa obra se denomina esgrafiado em baixo-relevo policromado e consiste, basicamente, na aplicação de várias camadas sobrepostas de argamassa pigmentada sobre as quais se esgrafia, raspa e corta até obter as cores e formas desejadas, seguindo um esboço em escala.
Quanto tempo demorou para ela ser executada? Você realizou o trabalho sozinho?
Entre a realização de vários esboços apresentados e a execução da obra em si, o tempo que demandou a obra foi de aproximadamente 30 dias. Mas o tempo real, que dependia da liberação de matérias e auxilio operacional de pedreiros por parte da prefeitura, foi de uns cinco meses. Dessa obra também participaram os artistas; Ana Hmeljevski, Vilmar Machado, Anderson Passos e Jacinto Miranda.
O mural já tem mais de dez anos. Como foi a reação dos moradores e turistas na época?
A proposta foi entendida pela população?Considero que a reação tanto da população como dos turistas e da própria imprensa foi muito positiva e acho que foi entendida e aceita por grande parte da comunidade. Prova disto é que até agora nunca foi deteriorada ou pixada.
O senhor é autor de outros murais na cidade. Quais são eles?
Tenho realizado outras obras particulares no município e com o patrocínio da VIVO um mural na Escola Parque, no Parque Nacional Iguaçu. Também sou autor de diversas obras em vários estados brasileiros e em países como Argentina, Bolívia e Paraguai.
Em outro mural da sua autoria (ou de autoria de outro artista) aconteceu algo parecido?Não tenho conhecimento se com outra obra aconteceu algo semelhante. Mas, analisado o panorama do nosso município e dos nossos políticos não é de se estranhar que este tipo de atentado cultural ocorra aqui. Gostaria de citar aqui um pensamento do saudoso Herbert “Betinho” de Souza: “Um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo pela sua ciência; muda sim pela sua cultura.”
POLÊMICA ANTIGA
O trabalho foi encomendado pela prefeitura (Fundação Cultural) da época?
A obra mural Raízes foi realizada para decorar a fachada do extinto Espaço Cultural Arandú –hoje uma academia de boxe- e formou parte de um projeto maior que a artista plástica Ana Hmeljevski, eu e outros artistas colaboradores apresentamos no início da gestão de ex-prefeito Harry Daijó, para o qual fomos contratados. Auxiliados pelo Departamento Jurídico da prefeitura que, entre outras coisas, exigiu a abertura de uma empresa –segundo eles- com o intuito de legalizar a contratação do grupo de artistas.
Em sete meses de contratação, muita burocracia mediante, realizamos apenas duas obras murais, uma na Fundação Cultural e esta sobre a que estamos tratando. Como sabemos o prédio onde fora inaugurado o espaço cultural era alugado pela prefeitura e os artistas contratados não decidiam sobre onde seriam erigidos os murais, embora tivéssemos alertado que o estado da fachada desta edificação estava bastante deteriorado.
A nossa contratação, acredite se quiser, foi denunciada como irregular pelo próprio Departamento Jurídico, órgão pelo qual fomos assessorados! Servindo nosso projeto como bode expiatório para derrubar o então presidente da Fundação Cultural Marco Aurélio de Mattos Alexandre, quem teve que responder processo judicial. Uma verdadeira palhaçada. É assim que funciona a nossa “justiça”
Qual era o objetivo da proposta na época?
O objetivo do projeto era o de realizar diversas obras murais em vários pontos para embelezar a cidade em troca 2.400 reais mensais que seriam repartidos entre seis pessoas do grupo de artistas.
CULTURA, HISTÓRIA E POLITICA
Qual sua avaliação sobre a preservação da cultura na cidade?
Afora algumas empreitadas particulares e isoladas, os órgãos públicos competentes, através dos nossos representantes, nos últimos 20 anos não tiveram nenhuma iniciativa relevante. Exceto os atrativos naturais pouco ou nada temos para mostrar. Carecemos de teatros, museus e de espaços culturais dignos. Inexistem projetos e investimentos no âmbito cultural, ignorando-se que recebemos anualmente um milhão de visitantes e que Foz do Iguaçu não tem opções à altura, capazes de atender uma população de quase 300 mil habitantes.
Qual sua avaliação sobre a preservação da história de Foz?
De ser uma pequena vila fronteiriça, em poucas décadas, Foz do Iguaçu se tornou uma cidade que abriga mais de 60 etnias. Um verdadeiro crisol, um arquipélago de pequenas ilhas culturais que convivem bem entre si, mas que ainda são incapazes de formar uma identidade cultural predominante que nos identifique e diferencie. Com este panorama não podemos esperar que se elaborem políticas públicas sérias que visem à preservação dos bens culturais do nosso município. Sem memória não há história.
O senhor acredita que a preservação da cultura-história do município é responsabilidade maior das autoridades públicas, logo da Prefeitura e Fundação Cultural?
Para responder esta questão, primeiro é necessário conceituar o significado do termo cultura. A Cultura não pode ser concebida apenas como um conjunto de manifestações artísticas, senão como um processo de formação humana que nos permite reconhecermos como seres culturais, individual e coletivamente. O homem age culturalmente segundo as formas materiais e espirituais do grupo social no qual atua e se comunica. Em principio, estas formas primordiais estão determinadas pela geografia, o clima e pelas experiências coletivas herdadas do passado e que, por sua vez, serão transmitidas simbolicamente para a seguinte geração.
Agir culturalmente significa reconhecer a existência de saberes, olhares e lógicas diferentes entre si que devem ser valorizadas e resgatadas do passado e do presente, como um patrimônio material e imaterial de e para a comunidade, que permita reconhecermos-nos como parte de um processo dinâmico de transformação, para ser parte dele e expressarmos-nos coletiva e individualmente.
Contrariando esta definição, o poder público local considera a cultura como um elemento supérfluo, meramente decorativo na dinâmica construção da nossa sociedade. Expressões mediáticas costumam ter absoluta prioridade e as ações culturais acabam sendo relegadas para um segundo plano.
A fundação Cultural é uma entidade de fachada que alberga diretorias indicadas politicamente e que responde a interesses dos prefeitos de turno. A cultura que existe em Foz é uma cultura do silêncio. “O mutismo –afirmava Paulo Freire- não é propriamente a inexistência de respostas. É uma resposta que lhe falta um tenor profundamente crítico”.
A cultura é tida como parte da política, sendo que a política é uma mínima fração da cultura. Nossa forma de agir politicamente, de expressarmos e pensar, de administrar, ver e educar; enfim, a cultura está refletida em nosso comportamento social. Não obstante a isso, a nível oficial, por falta de capacidade e de um olhar crítico, prolonga-se a cultura do silêncio e os artistas que emergem do povo, que expressam em sua arte essa conduta social, são vistos como românticos boêmios; como se fossem incapacitados sociais, sem profissão nem dignidade, sem espaços para a construção. Inclusive aqueles que comungam com o poder de turno e alcançam um determinado nível de prestigio, são vistos da mesma forma. Não existem discernimento nem pluralismo na análise e formalização de projetos artístico-culturais.
Como podemos ver aqui não se trata apenas de discutir a preservação ou não de uma obra mural em particular -que porventura é da minha autoria- e sim de ter uma idéia formada sobre os bens culturais em geral para poder debater e assumir uma postura, tomar decisões, realizar e aprovar projetos e investir em expressões culturais de profundo alcance social.
Sim, e cultura é de responsabilidade pública. Entretanto, a Fundação Cultural, como órgão oficial, em lugar de abranger com amplitude, tem se tornado um espaço hermético, com dirigentes carentes de visão e de abertura, que tentam monopolizar as expressões artísticas adequando-as a cada gestão, menosprezando assim o esforço humano dos profissionais das diferentes áreas que, na ausência de verbas próprias e de apoio oficial tácito, se vêem marginalizado, postergando suas criações e projetos. Sem preparo nem visão, duvido que os políticos tenham a mínima capacidade até para entender o propósito desta matéria.
Alexandre Palmar
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